terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O rapaz que tinha todo o vazio nos olhos

Capítulo II- À realidade


Por mais que me esforce, ainda não consegui imaginar o nada. Nada é o vazio, é o sem coisa alguma. Não faz sentido. O que eu quero dizer é: o que vemos num mundo em que só habita o nada? Qual é a cor do nada? Qual é a cor do sem cor? É engraçado eu em toda a minha curta vida ter o nada à minha frente, estampado nos meus olhos como a tinta fresca que surge quando acabamos de pintar uma parede. E, mesmo assim, ainda não descobri a cor do nada. O que eu via à minha frente era o preto. E o preto não é o nada, porque pode ser a morte ou simplesmente ser o preto. Tentamos ver a realidade da nossa mentira, e vemos o nada. Mas isso é outra coisa…

Mentimos para disfarçar o incómodo e a angústia do nada que é a realidade.


Caminhavam os dois naquela estrada que parecia não ter fim. Quando chegaram ao fim da estrada, encontraram uma caverna. Apesar do receio (pois as paredes da caverna estavam cobertas de teias de aranha), entraram.
-Filho, – disse a mãe. – entrámos na caverna. Está muito escuro. As teias enrolam umas coisas esquisitas – a mãe ia continuar, mas quando viu que essas coisas eram animais mortos enrolados em teias de aranha, deu um passo atrás.
-O que foi, mãe? – perguntou Matt.
-Não é nada. – mentiu ela.
Continuaram a caminhar pela caverna, quando algo inesperado agarrou Matt. Na verdade, era uma aranha gigante, e, por muito aterrador que isto fosse, era ela que capturava aqueles animais que estavam nas teias.
-Mãe! O que é isto?! Larga-me! – gritou Matt aterrorizado e em desespero.
Foi então que a mãe tirou uma navalha do seu bolso e a espetou na aranha. O mais nojento foi que começou a sair um sangue verde da mesma.
- Meu Deus, que nojo! – disse a mãe, com muita repugnância.
Depois de muito caminharem, encontraram uma abertura muito estreita nas paredes da caverna. Apesar de muito justa, era capaz de caber uma pessoa do tamanho da mãe. Foi o que fizeram. Entraram os dois na fenda, deram alguns passos e foram parar a uma espécie de salão. No tecto do salão, havia um buraco, por onde entrava um raio de sol. Mas este sol era como a brisa que havia na estrada. Morto e triste. Mas o mais espantoso é que havia debaixo desse raio de sol um gato gigante. Se ele tivesse em pé, possivelmente, não cabia lá, mas estava deitado a dormir.
- Filho, está um gato gigante a dormir aqui – disse a mãe, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
- A sério? Posso tocar-lhe?
- É melhor não. – respondeu a mãe. – Podes acordá-lo.
Não foi preciso tocar no gato, aquela conversa acordou-o. Os seus olhos verdes reflectiam o raio de luz parecendo dois diamantes.
-O que fazem aqui? – rosnou o gato.
- Desculpe, se… - ia dizer senhor, só que vendo bem as circunstâncias em que se encontravam, reformulou. – Quer dizer, senhor gato. Somos exploradores, não tivemos a intenção de acordá-lo.
O gato olhou-a de uma maneira esquisita, como se tivesse com dificuldades em percebê-la.
- Ah! Está bem, não faz mal. Vá, subam para o meu dorso. Vamos dar uma “volta”.
Os dois recearam.
- Tem a certeza? – perguntou a mãe, procurando ser o mais delicada possível.
- Sobe e cala-te.
O gato, apesar do seu ar autoritário, era bastante engraçado. Os dois subiram, com alguma dificuldade. Tocaram no pêlo do gato, que era muito macio. Como o gato não podia sair dali e não cabia claramente na fenda, com uma patada, derrubou as paredes da caverna e estavam outra vez ao ar livre. Mas agora não estavam na estrada, muito pelo contrário, estavam num terreno de erva macia, e o ar era outra vez normal. O gato correu muito, com os dois no dorso, até que chegou a um precipício. Mas o gato não parou de correr, e agora estavam ambos a cair.
- AAAAAAAAAH! – gritaram.
Mas o mais incrível é que o corpo do gato, por magia, ficou mais elegante e do pêlo nasceram asas, e agora estavam ambos a voar sobre CrunshLand. Voaram sobre o mar e viram sereias, subiram mais e viram as planícies e os vales. Conseguiram avistar a sua casa, as montanhas e os lagos (um deles chamava-se “O lago da baleia maldisposta”) e por fim pousaram em terra.
- Fiquem aqui, é perto da vossa casa. Adeus! – despediu-se o gato.
- Adeus, vemo-nos mais tarde! – disseram eles, em uníssono.
E assim o gato foi-se embora, a voar, desaparecendo na linha do horizonte.
Passou um ano. Mãe e filho viveram muitas aventuras. Mas foi numa manhã, que a vida deles mudou para sempre…
Matt acordou, preparado para um dia normal, quando viu à sua frente alguma coisa. Não interessa o que ele viu, porque estava no seu quarto. Interessa é que “ele viu”. Mesmo sendo o seu quarto normal, depois de estar 11 anos cego, as cores parecem muito mais forçadas. E foi o que aconteceu. Tal como aconteceu à mãe na aventura das flores, agora as cores percorriam as suas pupilas. Foi tal o choque, que caiu, causando muito barulho. Mas o choque ainda agora tinha começado. Entrou pela porta uma mulher. Tinha os cabelos loiros, mas não aquele loiro bonito. Era um loiro triste, de um amarelo pálido. A sua cara tinha muitas rugas, e era uma cara de uma mulher não muito velha, mas desgastada pela vida.
- Matt o que se passa? – disse a mulher.
Matt ficou de boca aberta. Aquela era a voz da sua mãe. Aquela era a sua mãe.
- Estou a ver… – foram só precisas aquelas duas palavras para a mãe parecer preocupada.
Nos seguintes dias, não o deixou sair de casa. Na quinta noite, ela explicou porquê.
-Matt, tenho que te explicar uma coisa. É tudo mentira. Toda a tua vida é uma mentira.
-O quê? – perguntou Matt, muito confuso.
-CrunshLand é uma mentira. O que eu te descrevia não era verdade. Não vivemos em nenhum mundo mágico. Sou escritora, e as aventuras que tínhamos, descrevia-as no papel. Mas isso não interessa. Explico-te já agora, porque bastaria sair de casa para entenderes. Mas quero-te explicar que mesmo que tudo não exista, existe na tua imaginação. Também queria dizer que vivemos no planeta Terra. Quer dizer, na verdade tu não existes.
-Como assim? – perguntou Matt, com os olhos cheios de lágrimas por causa de tudo aquilo.
-Não! Existes. – disse a mãe, acompanhada de um pequeno sorriso. – Mas no papel não existes. Não tens identidade. Porque se tivesses tinhas que ir á escola, falavas com outras pessoas, e essas acabariam por te dizer que vivemos no planeta Terra, e isso tudo de CrunsLand era mentira.
-Não… - agora as lágrimas ensopavam os seus olhos. – Não pode ser! Não me podias ter enganado! Eu confiei em ti!
A mãe suspirou e saiu do quarto. Não queria contar as coisas daquela maneira. Mas mais tarte ou mais cedo, ele ia acabar por descobrir.
Passou uma semana, e ele não saía da cama. Recusava-se a comer e chorava um choro silencioso e de muitas lágrimas. Foi então que acabou por sair da cama, percorreu o corredor da sua casa. Parou porque viu um quadro em forma de rectângulo na parede. Nesse quadro, havia um rapaz, de cabelo preto, cara pálida e cujos olhos eram carregados de um enorme vazio. Levou a sua mão à cara e reparou que o quadro fazia a mesma coisa. Fez alguns gestos, e o quadro continuava a seguir os seus movimentos. Pensou muito, e chegou à conclusão que aquele era um espelho e o rapaz era o seu reflexo. Era a primeira vez que se vira a si próprio.
Quando saiu de casa, viu pela primeira vez o seu mundo verdadeiro. Era composto por prédios cinzentos, as pessoas vestiam-se de roupas escuras e olhavam-no com muita admiração e preconceito.
Sem dar importância a isto, começou a correr. Correu tanto que agora já não estava numa rua com prédios, mas sim num campo aberto. Continuou a correr. Corria por frustração, tristeza, desilusão ou esses sentimentos todos. Continuou a correr, até que chegou ao precipício e caiu. “Caiu, caiu, caiu”… Parecia não ter fim. Acabou por cair em terra, causando um impacto tão grande que acabou por morrer. Estava rodeado de pessoas que o observavam apavoradas com todo aquele sangue.
O mais espantoso foi que Matt mergulhou em sonhos. E no seu sonho, caíra sob o gato peludo e grande, onde nasceram asas, tal como da outra vez. E juntos voavam a caminho do horizonte e desapareceram no pôr-do-sol, deixando todo o vazio que tinham na terra.

Pedro Vidigal

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